quarta-feira, 20 de maio de 2015

Sobre Jardim Secreto e a Patrulha do Lápis de Cor



Ganhei um livro de colorir e amei. Veio da mesma pessoa que me presenteou com Umberto Eco, Jorge Luís Borges, Vinícius de Moraes, Edgard Allan Poe e muitos outros escritores do cânone. Meu único problema em relação ao Jardim Secreto é que estou com muita pena de colorir. Achei as ilustrações tão lindas em branco e preto que fiquei receosa, mas vou [ar]riscar tudo tão logo tenha tempo sobrando.

Hoje vi no Tribunal da Santa Inquisição, vulgarmente chamado de Facebook, a patrulha do lápis de cor falando mal dos livros de colorir, como se Jardim Secreto e similares fossem os culpados pelo insignificante número de leitores em todo o território nacional.

O livro na escola é mostrado como ferramenta de punição. Traquinou? Vai pro cantinho da disciplina ler Dom Casmurro pra aprender a respeitar a professora! Na biblioteca o livro é algo tão intocável que poucos bibliotecários permitem o acesso às estantes. Nas livrarias, para grande parcela da população, eles são inatingíveis de tão caros. Para os cegos eles são intocáveis, inaudíveis e impossíveis, porque livro acessível no Brasil ainda é artigo raro que depende da caridade de voluntários.

Então, patrulha, me deixe, viu? Quem gosta de ler e tem acesso aos livros, quem foi seduzido pelo prazer da leitura, continuará lendo. Não será um livro de colorir o culpado do fracasso nas estatísticas do livro e da leitura no Brasil. Esses livros são objetos de distração. São como palavras-cruzadas, passatempo. Funcionam como fuga da rotina. A quem pretendem enganar com essa defesa do extremamente cerebral como única forma de expressão válida? Por que colorir ofende tanto, hein? Chegaram a falar em “campanha pela maioridade intelectual”. Eu sugeriria uma “Campanha pelo Livro para Todos”.

Nem queria falar naquele sentimento que acomete algumas pessoas quando uma ideia simples se transforma numa mina de ouro e o sujeito não teve a sorte de ser o autor. Em todo caso, patrulha, está nervosa? Vai pintar!

Patrícia Braille
Salvador, 20 de maio de 2015

sábado, 28 de março de 2015

Sobre ser invisível ao acordar [ou sobre meu silêncio matinal]

 [Descrição da imagem no fim do texto]

Há quase um mês sem carro para ir ao trabalho, preciso andar duas quadras até o ponto de táxi, o que tem sido um tormento, pela minha necessidade de ser invisível, por duas horas, toda manhã, após acordar.

Tenho me esforçado para estar alimentada, vestida e maquiada em apenas 40 minutos, porque dormir se tornou meu desejo mais profundo depois de 3 anos sem férias. Quem me ama respeita meu silêncio.

Tomo meu café, me dirijo ao portão. Enquanto abro o cadeado sinto que estou sendo observada. Minha vizinha, uma senhora de mais de 80 anos, acorda cedo, imagine, para controlar a movimentação da rua. Ela me espreita. Finjo que não vi, disfarço, olho para cima. Fico irritada ao perceber que o vizinho está, com uma caneca na mão, observando meus movimentos na janela do primeiro andar do prédio da frente.

Sigo rua acima, desejando ardentemente a minha invisibilidade. Mal dobro a esquina: “Patie! Bom dia! Dispensou o motorista hoje, foi? Vai a pé?”. Respiro fundo, dou uma risadinha silenciosa, imaginando como deve ser vazia a vida de quem se ocupa de observar a vida alheia. Não estou num dia bom, estou cansada e com muito sono.

Ainda não tinha me recuperado da surpresa de saber que meu vizinho sabia que eu tinha mudado meu tipo de transporte para ir ao trabalho, quando uma conhecida de minha mãe, que eu nunca vejo, me abordou: “Nossa! Você está gorda, né? Você engordou, foi?”. Ela, que usa uns 5 números a mais que eu, foi beneficiada pelo meu autismo autoinduzido, aquele estado em que eu me vejo, por vontade própria, impedida de interagir com o mundo exterior. Teve sorte de não poder ler o que eu sarcasticamente disse em pensamento: “Sim, estou muito gorda! Quase não posso andar. Quero me desculpar por essa imoralidade. Onde já se viu engordar ao ponto de usar manequim 38? Mas prometo à senhora que vou marcar minha cirurgia bariátrica”.

O relógio marcava 7h30 da manhã. Eu só precisava andar mais uma quadra até o ponto de táxi, mas ainda tive que encontrar outra mulher, dessas esfuziantes: “Bom diaaaa, Cris!!!”. Respondi ao “bom dia” sem nenhum interesse em lembrá-la que Cris é a minha irmã, eu me chamo Patrícia. Estava quase segurando a maçaneta da porta do táxi e escutei: “Ah, é, né? Tem meu cartão e não solicitou nosso serviço”. Eu não sei ser fiel a cabeleireiro e taxista, pelo simples fato de querer ser livre e não ter que esperar ninguém.

“Bom dia, moço. Secretaria da Educação, por favor”. O taxista me oferece o jornal. Agradeci à gentileza, mas ele não me deixou ler, comentando todo o tempo sobre as obras de reparo na cidade que atribui ao Governo do Estado e não deixou claro para mim se estava gostando ou odiando, pois ora reclamava do congestionamento e falta de organização, ora elogiava a beleza das estruturas. Tentei, em vão, explicar a diferença entre Estado e Prefeitura. “Neto não faz nada! Precisou Rui assumir o governo do estado para as obras da Orla começarem de verdade”.

Fiquei calada. Ele se desestimulou e se calou também. Foco no jornal. A leitura não me invisibiliza, mas faz o mundo sumir do meu campo de percepção e isso já me alivia. Cheguei à Secretaria. São 8h10 da manhã. Estou acordada desde as 6h, então já não há motivo para mau humor. Ligo meu computador, começo a receber pessoas. Minha colega da sala ao lado comenta sobre o que mais aprecia em mim: a meiguice. Agradeci com alegria. Alegria, esse sentimento que me acomete depois de 2 horas do despertar. Duas horas, esse tempo precioso do qual meu cérebro necessita para entender que não posso ser invisível e que sou uma pessoa muito meiga e sociável.

Patrícia Braille


Salvador, 27 de março de 2015

Descrição da imagem: Fotografia de uma pessoa, vista da altura do tórax para cima, usando um saco de papel na cabeça. Suas mãos estão em punhos cerrados, unidas frente ao rosto.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Estou voltando

Brevemente trarei meus escritos engavetados para o sofá vermelho.

Com açúcar e com afeto,
Patrícia Braille

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Acessibilidade pela revanche: não me inclua nisso!

Ainda estou perplexa e tentando recolher provas de que não entendi direito o conteúdo de um e-mail que recebi. Acontece que cada tentativa de provar o meu equívoco reforça a certeza desesperadora: a acessibilidade editorial, que mal nasceu, corre risco de morrer e nunca mais ressuscitar.

Trabalho com produção de livros em formatos acessíveis desde 1997. Ainda guardo o primeiro livro que adaptei artesanalmente em Braille, com ilustrações táteis e coloridas. Sobre os pontos em relevo, de caneta, com minha letra de professorinha de 16 anos de idade, transcrevi o texto para quem não sabia Braille, porque eu queria que “todas as pessoas” pudessem ler “O Patinho Feio”. Hoje percebo que eu poderia ter sido muito melhor nas ilustrações táteis, mas me alegro em ver como minha compreensão de acessibilidade avançou e aquelas ilustrações bidimensionais agora são acompanhadas de delicadas audiodescrições e também de bonecos que auxiliam os pais e professores a inserirem suas crianças no universo dos livros. É assim que os oriento a fazer: “Descrevam as imagens, façam um pacotinho de brinquedos para acompanhar as ilustrações”. A base do meu sonho é a mesma: livros para todos e até livros que todos, independentemente da sua limitação sensorial, possam ler.

Hoje li uma matéria que me provocou assombro: grandes nomes da literatura brasileira da atualidade lançaram uma coletânea de textos APENAS em Braille. Maior que o espanto de ver Luís Fernando Veríssimo, Fabrício Carpinejar, Martha Medeiros, Lya Luft e Eliane Brum participarem de um projeto assim, foi o de saber que a ação traz a marca de uma gigante da acessibilidade na América Latina: a Fundação Dorina Nowil para Cegos.

A ideia seria colocar o vidente no lugar do cego, fazendo-o perceber o quanto sofre a pessoa com deficiência visual que deseja ler, mas não consegue. Um vídeo, sem audiodescrição, foi produzido, trazendo a provocação tosca: "Um livro com textos dos maiores escritores do Brasil. Infelizmente, você não pode ler". Gelei diante do computador. “Você” quem? Eu e milhares de videntes que sabem Braille conseguirão ler esse livro, ao passo que outras milhares pessoas cegas e com baixa visão, que não sabem Braille, não poderão apreciar a obra, porque, enquanto alguns lutam por acesso pleno, livros em diversos formatos, vídeos com audiodescrição, livros em Braille, livros em Daisy, livros falados, livros ampliados, outros decidem trafegar na contramão do progresso, propondo uma segregação revanchista, como se os videntes tivessem que ser punidos pela falta de livros acessíveis no Brasil.

Em 2012, durante a Bienal do Livro em São Paulo, a Fundação Dorina trouxe a público uma campanha genial, que trazia a frase "6,5 milhões de pessoas querem ler o seu livro". Vibrei de alegria. A inteligência me comove. A sensibilidade me impulsiona. Considero uma atitude muito sensível e habilidosa convencer escritores a publicarem suas obras em formatos acessíveis, apresentando pessoas com limitação não como “deficiências ambulantes” e sim como “leitoras”. Muitos pontos (em Braille, claro) para a Dorina. Depois dessa, não consigo aceitar esse tiro que a Fundação deu no próprio pé.

As injustiças sociais e a falta de acessibilidade precisam ser superadas com políticas públicas feitas para todos. Excluir para incluir soa falso, parece discurso de quem participa da acessibilidade como um desatento expectador. Inspirada pelo exemplo do mestre Nelson Mandela, que, preso injustamente por 27 anos, conseguiu sua liberdade e o cargo de Presidente da África do Sul, teve a chance de se vingar de todos que o ultrajaram, mas simplesmente preferiu fazer um governo de reconciliação, declarando que, se não tivesse conseguido superar as agruras da prisão, jamais seria um homem verdadeiramente livre, afirmo: enquanto não conseguirmos ultrapassar as aflições impostas pela exclusão e falta de acessibilidade, nunca teremos um país realmente acessível.

Descrição da imagem 1: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Um livro com textos dos maiores escritores do Brasil". Fim da descrição.


Descrição da imagem 2: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Infelizmente, você não pode ler". Fim da descrição.



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O Caderno



Sempre tive uma verdadeira fascinação pela escrita em todas as suas manifestações. Meu primeiro contato com este mundo maravilhoso se deu muito cedo e a parede do meu quarto logo se transformou em meu painel predileto, para desespero da minha mãe, que para resolver este entrave me presenteou com cadernos e folhas de ofício que me acompanhariam “do primeiro rabisco até o bê-á-bá” [custavam menos que a tinta da parede e não inibiria meu desenvolvimento motor].

Entrei na escola um pouco tarde [por volta dos 6 anos], mas já sabia fazer desenhos “incríveis” e escrever a palavra mais linda e importante deste mundo: Patrícia. Eu fazia um “P” bem grande e desenhava flores, coelhos, casinhas... Minha família aplaudia. Conheci a primeira professora que me pareceu ser uma pessoa bem amável, mas bastou minha mãe dobrar a esquina e aquela criatura sem dotes para o magistério mostrou suas garras: “Entrem! Vamos logo! ‘Crionças’! Se não for no grito vocês nunca obedecem! Deus me livre de filhos”... Bem que aquela menininha da outra turma havia me avisado que a professora era bem brava. A aula começou e logo a “mestra” pediu que tentássemos copiar algumas letras que ela escreveria no quadro. Seria minha chance! Eu escreveria as letrinhas e desenharia coisas bem bonitas no meu caderno, quem sabe este seria um bom jeito de atingir a sua emoção? Afinal todos lá em casa gostavam dos meus desenhos, a pró não seria diferente.  Fiz conforme planejado. Quão grande foi minha decepção quando, cheia de encantamento, mostrei minha atividade para aquele ser bestial. “O que é isto? Você não sabe fazer o que alguém manda? Acho que teremos problemas! Que coisa ridícula!”. Como poderia ser ridícula aquela coisinha meiga que eu fiz com tanto carinho? Aquela professora, que nem vale citar o nome, era antes de tudo uma louca e eu, antes de tudo, uma teimosa...

Passaram-se oito anos. O cenário era outro: escola pública, aula de Português, caderno grande e uma Patrícia um pouco diferente por fora, mas com a mesma irreverência, embora mais contida, de sempre. Esta nova professora era mesmo diferente. Como pode uma pessoa que leciona Língua Portuguesa usar os assuntos de outras disciplinas em suas aulas? Era inédito para mim alguém permitir e até provocar que nossas atividades revelassem nossa personalidade e dotes artísticos. Eu achava que aquilo era bom demais para ser verdade e me limitei a assistir suas aulas e admirá-la, de longe, afinal ela também trazia consigo um ar de seriedade e eu preferia não arriscar.

Certo dia ela chegou irradiando beleza. Peguei meu caderno e fiz uma caricatura. Mal terminei e fui assaltada por minha colega que disse: “Vou mostrar para a professora!!!”. Pedi, implorei, quase chorei, mas a danada entregou mesmo. A professora me olhou bem séria e pediu que eu ficasse um pouco mais depois da aula. Gelei. A turma esperava no pátio que o pior pudesse acontecer. Que surpresa quando aquela mulher tão imponente me olhou e disse: “Obrigada, foi uma homenagem linda. A escola irá realizar uma exposição de arte e, se você quiser, posso te oferecer um painel bem grande onde você possa se expressar à vontade”. Aceitei. Reproduzi no painel a figura da Professora Maria José Grillo, que é, antes de tudo, um ser humano lindo e sabe muito bem o sentido do verbo “Educar”.


Patrícia Braille/2004

terça-feira, 16 de abril de 2013

Há malas que vêm pra bem e outros trocadilhos


Comprei uma mala de bordo bordô [o trocadilho me persegue], cujo tecido especial muda de tonalidade de acordo com a iluminação local, com rodinhas especiais que dão giros de 360 graus, dentre 450 outros benefícios. A vendedora me convenceu a adquirir uma mala diferenciada, edição limitada, para evitar possíveis equívocos em aeroportos, já que muita gente prefere mala na cor preta, básica e também muito fácil de ser trocada. Acontece que se algo tem apenas uma chance de dar errado, dará.

Depois de uns 30 minutos esperando minha mala em Guarulhos, avisto a incomparável e inconfundível bagagem deslizando na esteira. Resgato-a e saio, desconfiando do peso, bem superior ao que eu costumo levar. Mal dei 3 passos para fora do desembarque, percebo que estava portando os pertences de outra pessoa. Sim, a mala bordô quase rara e com efeitos de tonalidade tinha sido adquirida por outra pessoa. Talvez apenas esta pessoa, além de mim, tenha comprado mala semelhante, mas foi justamente este ser humano quem pegou o mesmo avião que eu, no mesmo dia, saindo do mesmo aeroporto, destino a São Paulo.

Fiquei sem chão ao perceber o equívoco. Pedi ajuda no setor de bagagens extraviadas e tudo ficou bem. Em poucos minutos tive minha mala de volta. Se Paulo não tivesse presenciado tudo, me ajudado a conversar com a funcionária da Tam [me trollado o tempo inteiro, afirmando que eu tinha roubado a mala de propósito], nem eu acreditaria que estive envolvida na mais perfeita tradução da Lei de Murphy.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Abra o olho!



─Qual é o seu problema, Frederico Antônio?
─Problema? Nenhum, querida. Por quê?
─Você está dando bola para aquela periguete de biquíni azul?
─Que loucura, Bárbara Cristina!
─Eu não vim ao clube com você para ser desrespeitada desse jeito! Ela não para de olhar para você!
─Mas se ELA está olhando, qual a minha culpa?
─Só pode ser porque VOCÊ está retribuindo! E ela ainda está usando aqueles ridículos óculos de sol para disfarçar! Que safada!
─Não fantasia, Bárbara Cristina!
─E ainda traz um cachorro pulguento para a piscina e fica acariciando o animal para se insinuar para você, Frederico Antônio! Eu vou embora!
─Calma!
─Calma? Eu vou embora, mas antes vou dizer umas verdades para aquela descarada!
─Volte aqui, Bárbara Cristina! Bárbara Cristina!
─Ei, mocinha!! Olha aqui...
─Está falando comigo, senhora?
─Errr... Olha... É que só agora eu percebi que seu cachorro...
─O que é que tem o meu cão-guia?
─Cuidado com as crianças para não machucá-lo. Era só isso. Obrigada e boa tarde. Está vendo, Frederico Antônio? Viu o que quase você me obrigou a fazer? Não saio mais com você!

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Que viagem!

─Alô! Bom dia. Quero falar com a senhora Patrícia.
─Bom dia. Sou eu.
─Senhora, aqui é do Aeroporto Internacional de Guarulhos e estou ligando para avisar que...
─Ai, moço!!! Esqueci a minha mala, não foi?
─Sim, senhora. Ela está retida...
─Em quanto tempo posso resgatá-la?
─Em trinta minutos, porque já fiz a averiguação do conteúdo que está sendo transportado nela.
─Então eu já estou indo buscar!
─Sua mala está aqui comigo.
─Como assim, moço? Eu esqueci a mala no Aeroporto Internacional Dois de, ops!, Luís Eduardo Magalhães!
─De acordo com novas determinações da ANAC, a bagagem esquecida em aeroportos internacionais deverá voltar para o ponto de origem, onde será resgatada pelo dono.
─Moço, o senhor quer me enlouquecer????!!!
─Não há motivo para isso, Patrícia. Pela quantidade de dinheiro que você carregava nela... hahaha
─Você é tão engraçadinho, moço! Eu não carregava dinheiro, mas minha bagagem é, sim, valiosa pra mim!
─Aquelas redações de suas alunas no bolso frontal? Hahaha Vi uns rascunhos seus também. Gostei, viu? Você é que é muito engraçada! hahaha
[pensamento on] Ai, meu pai, ele deve ter visto minhas calcinhas! [pensamento off]
─Moço, com quem eu falo para receber minha mala aqui em Salvador, no aeroporto onde ela foi esquecida?
─Você faz livros em Braille? Faria umas revistas caso eu precisasse?
─Moço, eu faço, mas o assunto aqui é minha mala, entendeu? Minha mala! Alô? Alô? Ai, eu mato essa Tim!! Moço, não desliga! Moçooooo!! Minha mala!!!!

Para meu alívio, acordei. Ufa, que sonho! E minha mala bordô está ali, intacta, enquanto eu aguardo ansiosa pela viagem do fim de semana.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sobre Mainha Nobel


Durante os festejos de fim de ano recebi um telefonema de minha amiga. Ela lamentava profundamente ter ensinado aos filhos de 6 e 3 anos sobre a existência do Papai Noel, já imaginando o dia em que terá de desfazer o castelo de ilusão ou, para aproveitar a metáfora, a árvore enfeitada de encanto, mas que não dura uma década.

Eu nunca acreditei em Papai Noel. Meus pais nunca me ensinaram a gostar do Noel. Minhas irmãs e eu sabíamos a lenda de cor, mas nunca esperamos que o barrigudinho de roupa vermelha entrasse pelo basculante [pela chaminé só seria possível na casa de minha avó, em Santa Bárbara, mas o barbudo não suportaria o calor, certamente].

O Natal em minha casa sempre foi encantado. Cortinas novas, o cheiro da cera no piso, os livros na estante recebiam organização especial, as plantas enfeitadas com bolas coloridas e o cheiro de bolos e biscoitos feitos por minha mãe, sempre me acompanharão. Biscoito de farinha de trigo, redondinho, com um pedacinho de goiabada no centro. Eu comia ainda quente, escondido!

Mainha sempre foi o máximo que um ser humano pode ser: bonita, autêntica, alegre, verdadeira. Ela não estudou um terço do que eu e minhas irmãs formalmente estudamos, não leu metade dos livros lidos por meu pai e é a mulher mais inteligente que minha família tem. Consegue lembrar-se de todas as datas, perceber alterações sutis de humor, sabe sobre farmacologia, naturopatia, gastronomia, desvenda sonhos, realiza desejos sem que mandemos cartas com um ano de antecedência. Em tempos difíceis ela fez o milagre da multiplicação da grana e assegurou para meu pai a compra de dois imóveis e um carro. Ela entende de economia e discerne o supérfluo do necessário sem pensar muito. Ela dá show de acessibilidade e inclusão. Meus amigos a chamam de mãe e eu não tenho ciúmes, porque ela me ensinou que certas coisas precisam ser partilhadas.

Acho que nunca senti falta de Noel, porque sempre tive mainha. Se eu contar todas as coisas que ela é capaz de fazer muita gente vai deixar de acreditar em mim, porque é mesmo surreal ser filha de uma mulher chamada Esmeralda, nascida em 25 de dezembro. É minha Mainha Nobel. Essa sim, ninguém nunca vai ter de me dizer que não existe.

7 de janeiro de 2012

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Sobre um leve suspeita que tenho


Nós conversamos diariamente sobre tudo e nesse tudo está incluído falar sobre nada. Somos dois cronistas do cotidiano, trocando impressões e dando pitaco em tudo: arte, política, esporte, astronomia, religião, astrologia, família, biologia, relacionamentos, bolinho de arroz, imóveis, fim do mundo, machismo, Beatles, feminismo, literatura, Allan Poe, Noruega, corujas, corvos, chocolate, ternurinha, heavy metal e mais quatro milhões e quinhentas coisas. 

Falamos sobre nós, sobre os nós e sobre as nozes. Trocadilhamos toda hora. Lemos o pensamento um do outro em Braille e em tinta e falamos alto, ao mesmo tempo, aquilo que acabamos de ler. Damos gargalhadas. Sorrimos muito: um do outro e um pro outro. Achamos que ficamos mais bonitos assim, só rindo. Nós somos fruto de um encontro incrível e somos incríveis desde então. Nosso amor tem cheiro e forma de felicidade, mesmo quando estamos em cidades diferentes. Temos muito mais que a garantia dos 30 anos de conversa prazerosa recomendado pelo Nietzsche. 

Apreciamos a escrita coerente, correta, mas nos chamamos de “Amô”. Nos admiramos muito e dizemos isso um pro outro de todo jeito. Sempre negamos um pro outro que às vezes brigamos. E acreditamos nisso piamente. Nosso abraço é nossa casa, nosso beijo é um ritual sagrado que fazemos questão de seguir sem regras. Somos um paradoxo lindo. Tudo isso para dizer que estou achando que a gente se ama... rs

16.12.12