[Descrição da imagem no fim do texto]
Há quase um mês sem carro para ir ao trabalho, preciso andar duas
quadras até o ponto de táxi, o que tem sido um tormento, pela minha necessidade
de ser invisível, por duas horas, toda manhã, após acordar.
Tenho me esforçado para estar alimentada, vestida e maquiada em apenas
40 minutos, porque dormir se tornou meu desejo mais profundo depois de 3 anos
sem férias. Quem me ama respeita meu silêncio.
Tomo meu café, me dirijo ao portão. Enquanto abro o cadeado sinto que
estou sendo observada. Minha vizinha, uma senhora de mais de 80 anos, acorda
cedo, imagine, para controlar a movimentação da rua. Ela me espreita. Finjo que
não vi, disfarço, olho para cima. Fico irritada ao perceber que o vizinho está,
com uma caneca na mão, observando meus movimentos na janela do primeiro andar
do prédio da frente.
Sigo rua acima, desejando ardentemente a minha invisibilidade. Mal dobro
a esquina: “Patie! Bom dia! Dispensou o motorista hoje, foi? Vai a pé?”.
Respiro fundo, dou uma risadinha silenciosa, imaginando como deve ser vazia a
vida de quem se ocupa de observar a vida alheia. Não estou num dia bom, estou
cansada e com muito sono.
Ainda não tinha me recuperado da surpresa de saber que meu vizinho sabia
que eu tinha mudado meu tipo de transporte para ir ao trabalho, quando uma
conhecida de minha mãe, que eu nunca vejo, me abordou: “Nossa! Você está gorda,
né? Você engordou, foi?”. Ela, que usa uns 5 números a mais que eu, foi
beneficiada pelo meu autismo autoinduzido, aquele estado em que eu me vejo, por
vontade própria, impedida de interagir com o mundo exterior. Teve sorte de não
poder ler o que eu sarcasticamente disse em pensamento: “Sim, estou muito
gorda! Quase não posso andar. Quero me desculpar por essa imoralidade. Onde já
se viu engordar ao ponto de usar manequim 38? Mas prometo à senhora que vou
marcar minha cirurgia bariátrica”.
O relógio marcava 7h30 da manhã. Eu só precisava andar mais uma quadra
até o ponto de táxi, mas ainda tive que encontrar outra mulher, dessas
esfuziantes: “Bom diaaaa, Cris!!!”. Respondi ao “bom dia” sem nenhum interesse
em lembrá-la que Cris é a minha irmã, eu me chamo Patrícia. Estava quase
segurando a maçaneta da porta do táxi e escutei: “Ah, é, né? Tem meu cartão e
não solicitou nosso serviço”. Eu não sei ser fiel a cabeleireiro e taxista,
pelo simples fato de querer ser livre e não ter que esperar ninguém.
“Bom dia, moço. Secretaria da Educação, por favor”. O taxista me oferece
o jornal. Agradeci à gentileza, mas ele não me deixou ler, comentando todo o
tempo sobre as obras de reparo na cidade que atribui ao Governo do Estado e não
deixou claro para mim se estava gostando ou odiando, pois ora reclamava do
congestionamento e falta de organização, ora elogiava a beleza das estruturas.
Tentei, em vão, explicar a diferença entre Estado e Prefeitura. “Neto não faz
nada! Precisou Rui assumir o governo do estado para as obras da Orla começarem
de verdade”.
Fiquei calada. Ele se desestimulou e se calou também. Foco no jornal. A
leitura não me invisibiliza, mas faz o mundo sumir do meu campo de percepção e
isso já me alivia. Cheguei à Secretaria. São 8h10 da manhã. Estou acordada
desde as 6h, então já não há motivo para mau humor. Ligo meu computador, começo
a receber pessoas. Minha colega da sala ao lado comenta sobre o que mais
aprecia em mim: a meiguice. Agradeci com alegria. Alegria, esse sentimento que
me acomete depois de 2 horas do despertar. Duas horas, esse tempo precioso do
qual meu cérebro necessita para entender que não posso ser invisível e que sou
uma pessoa muito meiga e sociável.
Patrícia Braille
Salvador, 27 de março de 2015
Descrição da imagem: Fotografia de uma pessoa, vista da altura do tórax para cima, usando um saco de papel na cabeça. Suas mãos estão em punhos cerrados, unidas frente ao rosto.
Simplesmente muito bom! Parabéns Patricia, belo texto, emotivo e engraçado (pra mim, é claro), mas com toda essa meiguice, entre o acordar e iniciar o trabalho, acredito que concordará comigo a comédia descrita por ti.
ResponderExcluirParabéns novamente.
P.S. Irei te observar, em horários que tu estiver visível, é claro.