Viver na companhia de crianças me dá a
oportunidade de estar sempre envolvida no riquíssimo universo da literatura
infantil. Os contos de fadas transitam pelo tempo carregando consigo
simbologias, muitas vezes assustadoramente atuais, como no recém-lançado Branca de Neve publicado pela Geração
Editorial.
Ao receber meu exemplar, além do projeto
gráfico impecável, o que me saltou aos olhos foi o estilo gótico das
ilustrações em perfeita associação com o enfoque um tanto mais sinistro da
obra, que não poupa o leitor de assuntos polêmicos como o canibalismo da rainha
má, que devorou pulmões e fígado de um javali, na certeza de que estava se
alimentando dos órgãos da bela Branca de Neve, pela qual sentia enorme inveja e
desejava ver morta, para continuar sendo a primeira, e não a segunda, mulher
mais bela de todo o reino.
Conferi a obra em companhia de minha irmã,
uma rigorosa “crítica de literatura” de apenas 11 anos. Foi uma excelente
oportunidade de conversarmos sobre diferentes estéticas, pois ela não escondeu
o estranhamento pelo descomunal uso de ilustrações mórbidas em contos infantis.
Eu percebi que nossa discussão pós-leitura seria mais rica do que a análise do
conteúdo imediato do texto. Ponto para os editores.
Depois de minha irmã ter condenado o
péssimo gosto do pai da personagem central no tocante à nova esposa, a
monstruosidade da madrasta que competia com uma criança, a estultícia da Branca
de Neve que caiu em cilada muito semelhante três vezes e depois de ter
concluído que lavar, passar, remendar, cozinhar para sete pessoas era tarefa
demais para uma só moça, eu não me surpreendi quando ela se irritou com a
indiscrição do Espelho Mágico: não contente em apenas dizer quem era a mais
bela, ele sempre informava onde estava escondida a pobre menina invejada.
Comecei a fazer muitas associações deste
conto com situações cotidianas da contemporaneidade. Eclodiram em mim
significados em forma de tempestade de ideias e questionamentos que me fizeram
apreciar ainda mais a boa literatura infantil. Passei a ver a rainha má como
muitas mulheres que diante da tela de um computador buscam imagens de modelos
de beleza e se deprimem na cruel comparação de seus corpos com aqueles que a
mídia sempre dirá serem os mais belos, os mais perfeitos, os insuperáveis, os
inatingíveis. Do outro lado estão as modelos, igualmente escravas do padrão
imposto. Mulheres que já “queimaram o sutiã”, mas que ainda, tal qual a Branca
de Neve, são escravas dos espartilhos apertadíssimos que lhes tira a liberdade
e, muitas vezes, a saúde. Espartilhos que podem ser a dieta anoréxica, os
tratamentos de beleza que são verdadeiras torturas medievais, as cirurgias
estéticas, desnecessárias em muitos casos, que não são capazes de reorganizar
uma alma insatisfeita.
Branca de Neve nunca, em minhas divagações
despretensiosas, foi o que agora me parece ser: a moça que jura nunca mais ser
dominada pelo padrão midiático, mas tem recaídas em série. Primeiro o
espartilho perversamente apertado, depois o pente que melhoraria a aparência dos
seus já proclamados perfeitos cabelos negros e, finalmente, a mordida na maçã
que prometia, em minha livre compreensão, o paraíso da dieta perfeita, levando
a moça ao quase óbito.
E ainda agarrada em minha livre compreensão,
percebi que a punição dada para a rainha má, dançar em sapatos de ferro
aquecidos em brasa, segue a mesma linha “não importa se dói, importa estar
bonita”. Para a malvada veio merecida morte. Para Branca de Neve, uma quarta
oportunidade de ser feliz que não veio de maneira fácil: foi necessário um
solavanco forte para ela acordar para a realidade. E o príncipe? Pouco atraente
nos traços de Camille Rose Garcia, provou que era mais do que as aparências
denotavam. Era um moço bacana que amava Branca de Neve “mais do que qualquer
outra coisa na Terra”.
Patrícia Braille
08/07/2012
Descrição da imagem: Capa do livro. Ilustração
em estilo gótico, onde predominam cores em tons escuros e sombrios, retratando
Branca de Neve, com rosto triste e assustado, fugindo com uma maçã na mão
esquerda. Um pássaro segura o laço de fita do vestido da menina com seu bico.
Sobre a imagem o título da obra, Branca
de Neve. No rodapé da capa as informações “Ilustrações de Camille Rose
Garcia” e a autoria do conto, que é dos Irmãos Grimm. No topo da capa, à
esquerda, a identidade visual da casa publicadora Geração Editorial.
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