sexta-feira, 9 de maio de 2014

Acessibilidade pela revanche: não me inclua nisso!

Ainda estou perplexa e tentando recolher provas de que não entendi direito o conteúdo de um e-mail que recebi. Acontece que cada tentativa de provar o meu equívoco reforça a certeza desesperadora: a acessibilidade editorial, que mal nasceu, corre risco de morrer e nunca mais ressuscitar.

Trabalho com produção de livros em formatos acessíveis desde 1997. Ainda guardo o primeiro livro que adaptei artesanalmente em Braille, com ilustrações táteis e coloridas. Sobre os pontos em relevo, de caneta, com minha letra de professorinha de 16 anos de idade, transcrevi o texto para quem não sabia Braille, porque eu queria que “todas as pessoas” pudessem ler “O Patinho Feio”. Hoje percebo que eu poderia ter sido muito melhor nas ilustrações táteis, mas me alegro em ver como minha compreensão de acessibilidade avançou e aquelas ilustrações bidimensionais agora são acompanhadas de delicadas audiodescrições e também de bonecos que auxiliam os pais e professores a inserirem suas crianças no universo dos livros. É assim que os oriento a fazer: “Descrevam as imagens, façam um pacotinho de brinquedos para acompanhar as ilustrações”. A base do meu sonho é a mesma: livros para todos e até livros que todos, independentemente da sua limitação sensorial, possam ler.

Hoje li uma matéria que me provocou assombro: grandes nomes da literatura brasileira da atualidade lançaram uma coletânea de textos APENAS em Braille. Maior que o espanto de ver Luís Fernando Veríssimo, Fabrício Carpinejar, Martha Medeiros, Lya Luft e Eliane Brum participarem de um projeto assim, foi o de saber que a ação traz a marca de uma gigante da acessibilidade na América Latina: a Fundação Dorina Nowil para Cegos.

A ideia seria colocar o vidente no lugar do cego, fazendo-o perceber o quanto sofre a pessoa com deficiência visual que deseja ler, mas não consegue. Um vídeo, sem audiodescrição, foi produzido, trazendo a provocação tosca: "Um livro com textos dos maiores escritores do Brasil. Infelizmente, você não pode ler". Gelei diante do computador. “Você” quem? Eu e milhares de videntes que sabem Braille conseguirão ler esse livro, ao passo que outras milhares pessoas cegas e com baixa visão, que não sabem Braille, não poderão apreciar a obra, porque, enquanto alguns lutam por acesso pleno, livros em diversos formatos, vídeos com audiodescrição, livros em Braille, livros em Daisy, livros falados, livros ampliados, outros decidem trafegar na contramão do progresso, propondo uma segregação revanchista, como se os videntes tivessem que ser punidos pela falta de livros acessíveis no Brasil.

Em 2012, durante a Bienal do Livro em São Paulo, a Fundação Dorina trouxe a público uma campanha genial, que trazia a frase "6,5 milhões de pessoas querem ler o seu livro". Vibrei de alegria. A inteligência me comove. A sensibilidade me impulsiona. Considero uma atitude muito sensível e habilidosa convencer escritores a publicarem suas obras em formatos acessíveis, apresentando pessoas com limitação não como “deficiências ambulantes” e sim como “leitoras”. Muitos pontos (em Braille, claro) para a Dorina. Depois dessa, não consigo aceitar esse tiro que a Fundação deu no próprio pé.

As injustiças sociais e a falta de acessibilidade precisam ser superadas com políticas públicas feitas para todos. Excluir para incluir soa falso, parece discurso de quem participa da acessibilidade como um desatento expectador. Inspirada pelo exemplo do mestre Nelson Mandela, que, preso injustamente por 27 anos, conseguiu sua liberdade e o cargo de Presidente da África do Sul, teve a chance de se vingar de todos que o ultrajaram, mas simplesmente preferiu fazer um governo de reconciliação, declarando que, se não tivesse conseguido superar as agruras da prisão, jamais seria um homem verdadeiramente livre, afirmo: enquanto não conseguirmos ultrapassar as aflições impostas pela exclusão e falta de acessibilidade, nunca teremos um país realmente acessível.

Descrição da imagem 1: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Um livro com textos dos maiores escritores do Brasil". Fim da descrição.


Descrição da imagem 2: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Infelizmente, você não pode ler". Fim da descrição.



Um comentário:

  1. Patricia

    Só agora li este post e adorei!!!

    Vc foi direto ao ponto, com firmeza e civilidade. Exprimiu muito bem meu desconforto.

    Abraço
    Marta Gil

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