Ainda estou perplexa e tentando
recolher provas de que não entendi direito o conteúdo de um e-mail que recebi. Acontece que cada
tentativa de provar o meu equívoco reforça a certeza desesperadora: a acessibilidade
editorial, que mal nasceu, corre risco de morrer e nunca mais ressuscitar.
Trabalho com produção de livros
em formatos acessíveis desde 1997. Ainda guardo o primeiro livro que adaptei
artesanalmente em Braille, com ilustrações táteis e coloridas. Sobre os pontos
em relevo, de caneta, com minha letra de professorinha de 16 anos de idade,
transcrevi o texto para quem não sabia Braille, porque eu queria que “todas as
pessoas” pudessem ler “O Patinho Feio”. Hoje percebo que eu poderia ter sido
muito melhor nas ilustrações táteis, mas me alegro em ver como minha
compreensão de acessibilidade avançou e aquelas ilustrações bidimensionais
agora são acompanhadas de delicadas audiodescrições e também de bonecos que
auxiliam os pais e professores a inserirem suas crianças no universo dos
livros. É assim que os oriento a fazer: “Descrevam as imagens, façam um
pacotinho de brinquedos para acompanhar as ilustrações”. A base do meu sonho é
a mesma: livros para todos e até livros que todos, independentemente da sua
limitação sensorial, possam ler.
Hoje li uma matéria que me
provocou assombro: grandes nomes da literatura brasileira da atualidade lançaram
uma coletânea de textos APENAS em Braille. Maior que o espanto de ver Luís Fernando
Veríssimo, Fabrício Carpinejar, Martha Medeiros, Lya Luft e Eliane Brum
participarem de um projeto assim, foi o de saber que a ação traz a marca de uma
gigante da acessibilidade na América Latina: a Fundação Dorina Nowil para
Cegos.
A ideia seria colocar o vidente
no lugar do cego, fazendo-o perceber o quanto sofre a pessoa com deficiência
visual que deseja ler, mas não consegue. Um vídeo, sem audiodescrição, foi
produzido, trazendo a provocação tosca: "Um livro com textos dos maiores
escritores do Brasil. Infelizmente, você não pode ler". Gelei diante do
computador. “Você” quem? Eu e milhares de videntes que sabem Braille
conseguirão ler esse livro, ao passo que outras milhares pessoas cegas e com
baixa visão, que não sabem Braille, não poderão apreciar a obra, porque, enquanto
alguns lutam por acesso pleno, livros em diversos formatos, vídeos com
audiodescrição, livros em Braille, livros em Daisy, livros falados, livros
ampliados, outros decidem trafegar na contramão do progresso, propondo uma
segregação revanchista, como se os videntes tivessem que ser punidos pela falta
de livros acessíveis no Brasil.
Em 2012, durante a Bienal do
Livro em São Paulo ,
a Fundação Dorina trouxe a público uma campanha genial, que trazia a frase
"6,5 milhões de pessoas querem ler o seu livro". Vibrei de alegria. A
inteligência me comove. A sensibilidade me impulsiona. Considero uma atitude
muito sensível e habilidosa convencer escritores a publicarem suas obras em
formatos acessíveis, apresentando pessoas com limitação não como “deficiências ambulantes”
e sim como “leitoras”. Muitos pontos (em Braille, claro) para a Dorina. Depois
dessa, não consigo aceitar esse tiro que a Fundação deu no próprio pé.
As injustiças sociais e a falta
de acessibilidade precisam ser superadas com políticas públicas feitas para
todos. Excluir para incluir soa falso, parece discurso de quem participa da
acessibilidade como um desatento expectador. Inspirada pelo exemplo do mestre
Nelson Mandela, que, preso injustamente por 27 anos, conseguiu sua liberdade e
o cargo de Presidente da África do Sul, teve a chance de se vingar de todos que
o ultrajaram, mas simplesmente preferiu fazer um governo de reconciliação, declarando
que, se não tivesse conseguido superar as agruras da prisão, jamais seria um
homem verdadeiramente livre, afirmo: enquanto não conseguirmos ultrapassar as
aflições impostas pela exclusão e falta de acessibilidade, nunca teremos um
país realmente acessível.
Descrição da imagem 1: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Um livro com textos dos maiores escritores do Brasil". Fim da descrição.
Descrição da imagem 2: Print da tela do Youtube no trecho do vídeo onde se lê: "Infelizmente, você não pode ler". Fim da descrição.
O projeto: http://www.palavrasinvisiveis.com.br/sobre
Patricia
ResponderExcluirSó agora li este post e adorei!!!
Vc foi direto ao ponto, com firmeza e civilidade. Exprimiu muito bem meu desconforto.
Abraço
Marta Gil